quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O Lutador
Lutar com palavras é a luta mais vã.Entanto lutamos,mal rompe a manhã.São muitas, eu pouco.Algumas, tão fortescomo o javali.Não me julgo louco.Se o fosse, teria poder de encantá-las.Mas lúcido e frio,apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida.Deixam-se enlaçar,tontas à caríciae súbito foge-me não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.Insisto, solerte.Busco persuadi-las.Ser-lhes-ei escravo de rara humildade.Guardarei sigilode nosso comércio.Na voz, nenhum travo de zanga ou desgosto.Sem me ouvir deslizam,perpassam levíssimase viram-me o rosto.Lutar com palavras parece sem fruto.Não têm carne e sangue…Entretanto, luto.Palavra, palavra(digo exasperado),se me desafias,aceito o combate.Quisera possuir-te neste descampado, sem roteiro de unha ou marca de dente nessa pele clara. Preferes o amor de uma posse impura e que venha o gozo da maior tortura.Luto corpo a corpo,luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento.Não encontro vestes,não seguro formas,é fluido inimigo que me dobra os músculos e ri-se das normasda boa peleja.Iludo-me às vezes,pressinto que a entrega se consumará.Já vejo palavrasem coro submisso,esta me ofertando seu velho calor,aquela sua glória feita de mistério,outra seu desdém,outra seu ciúme,e um sapiente amor me ensina a fruir de cada palavraa essência captada,o sutil queixume.Mas ai! é o instantede entre abrir os olhos:entre beijo e boca, tudo se evapora.O ciclo do diaora se conclui e o inútil duelo jamais se resolve. O teu rosto belo,ó palavra, esplendena curva da noite que toda me envolve. Tamanha paixão e nenhum pecúlio.Cerradas as portas,a luta prossegue nas ruas do sono...

Carlos Drummond de Andrade

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